O Fadista Operário
“A tradição nunca finda, ainda ninguém a matou! O presente vive ainda do passado que ficou… E pronto! A volta está finda, para quê andar mais à toa? Se Lisboa é toda linda e se o nosso Bairro é Lisboa?”
Alfredo Marceneiro não foi um mero fadista, pelo contrário, é o fado quem lhe deve bastante!
Filho da Freguesia de Santa Isabel, cantou e encantou Portugal, inventou o fado cantado em pé e alumiado à média luz. Recebeu honras e aplausos dos mais sonantes fadistas da sua geração, como das divas Amália Rodrigues que lhe disse “Alfredo tu és o fado!”, ou de Hermínia que afirmou que “se eu não fosse Hermínia Silva gostava de ser Alfredo Marceneiro”.
Um homem dos finais do século XIX e com os costumes próprios desses tempos. Talvez por isso tenha sido difícil convencer Alfredo Marceneiro a gravar o seu primeiro disco. Ele fê-lo contrariado e de olhos vendados. Mais tarde viria a afirmar que “o meu maior desgosto em relação ao fado foi gravar discos. Os discos vieram industrializar o fado, o fado não se deve vender, eu canto porque a minha alma o ordena, canto como se rezasse. Não gosto de cantar para máquinas. Quero ver o público, analisar as suas reacções, ver se estão a gostar"!
O fadista não gostou, mas o público agradece o sacrifício. No dia 26 de Junho de 1982, os 91 anos acabaram por levar-lhe a vida e restam agora os arquivos discográficos e o trabalho constante desenvolvido pelos seus filhos, netos e bisnetos para o manter vivo e audível para quem o bem entender!
E como os tempos mudaram foi nas marés bravas do mundo cibernético que o Jornal do Bairro descobriu a maior memória de Marceneiro, uma página desenvolvida pela sua bisneta Susana Duarte e que poderá ser visitada em www.alfredomarceneiro.com. Também Valdemar Duarte, neto do fadista, tem vindo a dinamizar inúmeras actividades para que a sua memória não se perca. Preocupações que parecem ser adiadas pela Autarquia, afinal “este país trata muito mal os seus ídolos”… Assim falou Valdemar ao JB!
Para começar, quem foi Alfredo Marceneiro?
O Alfredo cantou de 1910 a 1974 sempre com agrado dos apreciadores do fado, atravessou várias gerações e foi para os críticos e historiadores um dos melhores intérpretes do fado. Tem cerca de três dezenas das mais belas músicas de sua autoria registadas na SPA.
Ele começou a cantar o fado por volta dos 20 anos e cantou-o com o agrado de todos os seus admiradores até aos 80 anos.
É verdade que o seu avô foi o responsável pela “novidade” de cantar à média luz? Como é que esse episódio aconteceu?
Posso-lhe transmitir o episódio, tal como ele o recordava…
Todos os anos, para celebrar a abertura da água-pé, o Rogério Estivador organizava na sua Quinta da Paiã, uma grande e regada patuscada, acabando sempre a festança com uma sessão de fados, sendo os fadistas convidados pelo Chico Carreira. O Rogério Estivador, que não era grande apreciador de fado, comentava sempre que para ele os fadistas cantavam todos da mesma maneira.
O Chico Carreira foi ter com o Alfredo e contou-lhe tudo, então ele encheu-se de brios, levantou-se e disse que ia cantar, dedicando ao dono da casa, senhor Rogério, mais um fado.
A letra que escolheu é da autoria de Henrique Rêgo e tem como tema o sentimento que mais prezava: o Amor de Mãe. Alfredo pediu então que se apagassem as luzes. Isso não era habitual e o dono da casa até perguntou, “então ficamos às escuras?”. O Marceneiro disse que não, mandou vir umas velas e mandou que as espetassem em gargalos de garrafas.
No meio do maior silêncio, Alfredo Marceneiro entoou, com sentimento profundo, o fado “Oh! Águia”. Quando acabou, o Rogério Estivador não resistiu e chorou grossas lágrimas, tendo num impulso irresistível corrido a abraçá-lo. Naquela noite, o Alfredo Marceneiro deu início à tradição de diminuir a iluminação quando se canta o Fado.
Para além dessa inovação, o Marceneiro também foi pioneiro em cantar o fado em pé…
Sim… foi em 1921, ainda no tempo do cinema mudo, em que o Alfredo Marceneiro era contratado para cantar nos intervalos das exibições cinematográficas do Chiado Terrasse.
Como o Alfredo Marceneiro e o Júlio Proença estavam no auge das suas carreiras, o público começou a acorrer em maior número ao cinema para além de assistir ao filme, também ouviam cantar o Fado.
O Alfredo Marceneiro, que já tinha criado o hábito de se cantar o fado à média luz, teve mais um dos seus repentes de criatividade e levantou-se para cantar. Nessa altura, todos os fadistas cantavam sentados e os espectadores mais distantes tinham a tendência de se levantarem para conseguirem ver quem estava a actuar, o que provocava um certo burburinho que prejudicava as actuações. Com a atitude de Alfredo Marceneiro, o Fado ganhou outro respeito. A partir desse dia, os tocadores e os fadistas passaram a ter um lugar de destaque nas salas onde actuavam e o fado começou a ser cantado em pé.
A “Casa da Mariquinhas” foi a grande consagração do seu avô. O êxito foi tal que ele, como marceneiro que era, construiu essa mesma casa em ponto pequeno. Quanto tempo demorou a construir essa obra?
Demorou cerca de quinze anos, pois ele ia fazendo aos poucos nas horas vagas. Esta obra é um autêntico trabalho de marcenaria, pois todas as peças são em miniatura, não têm um só prego e é tudo feito em entalhe. A casa contém tudo o que está na letra do fado, os quadros de gosto magano, o cofre forte, as janelas com tabuinhas, na sala uma guitarra, no vão de cada janela sobre coluna uma jarra, o candeeiro a petróleo etc. Esta obra está em exposição no Museu do Fado, em Alfama.
Este tema devia ser um dos mais aplaudidos e solicitados pelo público. O seu avô nunca confidenciou estar cansado de ter de interpretar sempre esta canção?
Não, penso que nunca lhe ouvi qualquer desabafo desses e até acho que ele o cantava sempre com bastante prazer.
Qual era o fado preferido de Marceneiro?
Penso que era A Viela, com música do fado Cravo de sua autoria e também gostava muito do Fado Bailado...
O cigarro quase nunca escapava das fotografias do seu avô. Ele fumou durante quase toda a vida… o tabaco nunca lhe afectou as cantorias?
Ele fumou até aos 80 anos e acho que não o afectou, pois como já disse atrás também cantou com agrado de quem o ouviu até essa idade.
O seu avô criticava a comercialização do fado. Ele era um fadista do povo?
O meu avô era um homem dos finais do século XIX.
Ele criticava a comercialização do fado porque era avesso às máquinas - por exemplo, a primeira vez que gravou foi bastante contrariado e com os olhos vendados - e não por não ser um fadista do povo, pois em todas as festas de beneficência para as quais era convidado nunca recusava o convite, ele gostava do fado no seu ambiente natural.
É verdade que o seu avô pouco saiu de Lisboa e que nunca se ausentou de Portugal com o objectivo de divulgar a sua música no estrangeiro?
Sim e as razões eram várias. Como já disse atrás ele era um homem do final século XIX e que chegou quase até final do século XX com costumes e hábitos diferentes. Não gostava de viajar, só viajou uma vez de avião de Lisboa para o Algarve e foi o José Pracana, que era funcionário da TAP, que o convenceu. Ele foi todo o caminho na cabine dos pilotos e para cima veio de comboio. O meu avô nunca cantou por dinheiro, podiam-lhe oferecer o que quisessem, se não lhe apetecesse cantar não cantava! Eu recordo-me de em 1966 estar em casa dele a jantar e entrarem pela porta o Raul Solnado e o Fialho Gouveia a dizer que os portugueses no Brasil queriam que ele fosse lá e que com tudo pago ainda recebia 300 contos limpos - que naquela altura era muito dinheiro - mas a resposta dele foi “não”!
O Valdemar é filho do 3º. filho de Marceneiro, Carlos Duarte. O seu pai chegou a gravar um disco de fado e o seu tio Alfredo Duarte também, sendo mesmo apelidado de “Fadista Bailarino". Porquê bailarino?
Sim, o meu pai Carlos Duarte gravou um disco de 45 rotações com 4 fados, mas o meu pai era empregado de escritório e cantava o fado aos fins-de-semana, nunca foi profissional do fado… já o meu tio Alfredo Duarte Jr. fez do fado a sua profissão e como tal, teve de criar o seu próprio estilo - pois antigamente era impensável alguém aparecer a imitar o estilo de outro qualquer - e na criação do seu próprio estilo “gingava-se”, bailava a cantar o fado. Por isso foi apelidado de Fadista Bailarino, mas o meu tio tem vários discos gravados.
O próprio Valdemar também foi fadista. Actuou durante algum tempo no Retiro da Cesária, em Alcântara, mas acabou por seguir outra actividade. Porque é que desistiu?
Sim, eu cantei o fado na Cesária em Alcântara de 1966 a 1970 e achei que tinha uma grande responsabilidade pelo facto de ser neto do Alfredo Marceneiro, pois era apresentado como tal. Como eu sou um perfeccionista e achei que não correspondia a essa responsabilidade, desisti, se calhar se não fosse neto de Alfredo Marceneiro ainda hoje cantava o fado!
Dos inúmeros ascendentes de Marceneiro há algum que prometa vir a adoptar as suas pisadas?
Tenho um primo, filho do Alfredo Duarte Jr., o Vítor Duarte que começou a cantar mais ou menos na mesma altura que eu e ainda hoje continua a cantar. Dos bisnetos ninguém canta, dos trinetos não sei, o futuro o dirá!
Para além da celebração do centenário do fadista, em 1991, repetiram-se algumas homenagens mas que não acontecem desde 1994. Porquê?
Olhe, porque este país trata muito mal os seus ídolos! Na altura em que a casa onde morou e morreu o meu avô se estava a degradar - por conveniência do senhorio -, eu escrevi uma carta ao senhor João Soares, que era na altura vereador da Cultura da CML, a sugerir que se fizesse ali um museu Alfredo Marceneiro. O senhor nem sequer me respondeu! Quando o meu avô morreu solicitou-se à CML, com o apoio escrito da paróquia de Santa Isabel, que se desse à Rua da Páscoa o nome de Rua Alfredo Marceneiro - pois fazia sentido que fosse na Freguesia que estivesse uma rua com o seu nome - e foram pôr a rua no Bairro de Chelas! Quando eles não preservam nem a casa do Fernando Pessoa como é que se iam preocupar com o Alfredo Marceneiro?!
Alfredo-Lulu, o “Janota”
Dizem que era um homem vaidoso e namoradeiro...
Alfredo Rodrigues Duarte nasceu no seio de uma família modesta, na Freguesia de Santa Isabel. Decidiu o fado da vida levar-lhe o pai aos 13 anos, obrigando-o a abandonar os estudos para ajudar a sua mãe no sustento da casa e dos irmãos mais novos. Arranjou o seu primeiro emprego como aprendiz de encadernador mas Júlio Janota, um fadista improvisador que era mestre na profissão de marceneiro, arranjou-lhe uma colocação como seu aprendiz numa oficina em Campo de Ourique.
Foi no “14” do Largo do Rato, numa antiga casa de jogo transformada em “cabaret” que Alfredo, com cerca de 20 anos, começou a ser mais conhecido no meio fadista, sendo várias vezes convidado a cantar alguns fados improvisados.
Quando os irmãos seguiram o seu próprio rumo, Alfredo ficou com a mãe e alugou uma casa no nº. 49 da Rua da Páscoa, em Campo de Ourique, sítio onde viveu até ao último sopro da sua vida e que curiosamente ruiu no domingo de Páscoa, sendo hoje um prédio constituído por vários apartamentos.
O fadista foi um homem de paixões e teve 5 filhos, um de Aurora, outro de Palmira e três de Judite, a sua eterna companheira.
O jovem Alfredo fazia questão de andar sempre muito bem vestido de fato, camisa muito bem engomada com o laço ao pescoço e calçando “polainites” de polimento. Desse seu aspecto elegante nasceu a alcunha de Alfredo Lulu - Lulu era equivalente ao “janota” dos nossos dias.
Em meados de 1920, um grupo de fadistas organizou, no recinto Clube Montanha, uma festa de homenagem a dois nomes grandes do fado de então: Alfredo Coreeiro e José Bacalhau. E porque Alfredo Lulu não era um nome muito apropriado e os produtores do evento desconheciam o nome completo do fadista, o cartaz contou com o nome Alfredo mas apelidado de Marceneiro, a profissão do artista. Ao contrário de Lulu, Alfredo Marceneiro era um novo nome do fado e a curiosidade do público foi tanta que a lotação do espectáculo esgotou. Marceneiro esmerou-se tanto por corresponder aos anseios do público que acabou por ser um êxito e por nunca mais largar essa alcunha que foi e será sua, para a eternidade.
Como diria Armando Neves, para que o próprio assim o cantasse, “este apelido em mim que pouco valho, da minha honestidade é forte indício. Sou Marceneiro, sim, porque trabalho! Marceneiro no fado e no ofício”!
M.A.