O Paris da Minha Infância
Comecei a frequentar o Cinema Paris era ainda uma criança de colo. Não se espante o amigo leitor porque, naquele tempo – anos 40 do século passado – não existiam escalões etários para se frequentar salas de espectáculo. Isto dava origem a situações insólitas e hilariantes: bebés a interromperem o atento silêncio dos espectadores com o seu choro convulsivo e a provocarem intermináveis rios de xixi a correrem por entre as cadeiras da plateia…
Diariamente, decorriam duas sessões: a “matinée”, às 15 h e a “soirée” às 21h, horário mais do que conveniente para servir de complemento a uma boa (ou menos boa…) refeição. Constavam as sessões de dois filmes, um jornal de actualidades e uma curta-metragem de desenhos animados, ou seja, um tanto programa para todos os gostos e todas as carteiras.
O Paris estava programado para prover às prementes necessidades económicas da população do Bairro. As duas primeiras filas da plateia custavam apenas 2$00 (dois escudos); depois existiam as 1ª. e 2ª. plateias e a plateia reservada, além dos 1º. e 2º. Balcões, camarotes e frisas. Existiam, também, umas colunas, plantadas em plena plateia, a suster o balcão e a impedir a cabal visão do ecrã por parte dos “desgraçados” que calhassem atrás das colunas…
O Cinema tinha um óptimo palco, onde se realizavam programas de variedades, alguns transmitidos pela Rádio. Recordo-me da “Hora do Zeca”, em que actuavam dois ilusionistas – pai e filho – vestidos de mandarim chinês, com rabicho e tudo… o pai chamava-se Octávio de Matos (não, não é desse…), o filho era Rogério, mas, mais tarde, adoptaria o mesmo nome do pai, para enveredar por uma longa carreira teatral, ainda hoje existente.
No pátio exterior, ao ar livre, o Eduardo dos Livros vendia, a preços quase simbólicos, livrinhos de anedotas, bandas desenhadas, jornais juvenis para entreter o espectador, durante os intervalos da projecção. Esses intervalos – dois ou três? – eram aproveitados para se frequentar os dois bares – plateia e balcão. Junto ao balcão, estava instalada uma bela sala de convívio – o “foyer” – que se transformava em salão de baile, nas intermináveis noites de Carnaval. Aliás, no Carnaval, toda a plateia se convertia numa imensa sala de baile, a rivalizar com sua congénere, mais selecta, do balcão. “Luz, Cor & Alegria” era o “slogan”, e os bailes eram abrilhantados por “2 – Conjuntos Musicais - 2” e proporcionavam “um esmerado serviço de bufete”.
Nos intervalos da projecção, quem não queria sair do seu lugar para beber ou comer algo nos bares, podia “aviar-se”, pois um pequeno vendedor (não havia leis contra o trabalho infantil…) percorria as filas, vendendo rebuçados, chocolates, pastilhas elásticas, guloseimas diversas e… copos de água (vendida, pois claro! a dois tostões o copo).
O Paris e os outros cinemas do Bairro (e adjacências) foram testemunhas da minha infância e adolescência, da irreverência de jovens, postos na rua (por indecente e má figura) por agentes da Autoridade, devidamente fardados e armados. Também assistiram à turbulência de um povo bairrista, pródigo em “bocas” que oscilavam entre o humorístico e o obsceno.
Como fundo sonoro, ouviam-se sussurros que chegavam a ser incómodos e provocavam os “shiiiu” irados dos espectadores: tratava-se da leitura, em voz baixa mas audível, das legendas dos filmes, feita pelos acompanhantes dos inúmeros analfabetos existentes no meu Bairro (e em todo o meu país).
Fernando J. Almeida
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