2.2.07

Correio do Leitor


O eléctrico prepara-se para uma nova viagem. Lá dentro estão contidos os sonhos de uma geração, geração de paisagem que percorre os labirintos de Lisboa como quem caminha nos sonhos, de noite. Esta tarde ameaça findar a qualquer momento: há um suspiro e um olhar para o relógio. O eléctrico parte.

Lá vai pela Saraiva de Carvalho deserta. Os olhares postos nas janelas, como se o mundo lá fora fosse televisão. Aguardas a chegada, mesmo não sabendo muito bem o que isso é, chegar e partir, ver e vencer, jogar e sentir.

Como se a vida fosse só um rodar à chave, pé no acelerador, cuidado com o radar. Como se suspirar fosse só um passar de tempo. Precisas de um cigarro.

A carruagem desce vertiginosamente até à Estrela. Ao fundo, a Basílica olha-te no alto, pedra e cal, o largo e o jardim à esquerda, acenando-te, fazendo-te rebuscar pedaços de memória que julgavas enterrados.

Hoje não.

Hoje desces na mesma paragem de outrora, mas usas um casaco diferente e as tuas mãos estão velhas, marcadas por um tempo que se deixa enferrujar. Olhas para cima porque o céu te dá coragem. E entras no jardim, como quem entra dentro de si próprio. Como quem caminha sobre a palma da sua própria mão.

Decides apagar todos os fragmentos que ainda se encontram espalhados como migalhas no teu livro em branco. Decides olhar para as árvores e para todos os recantos de verde e azul como quem olha para para o futuro. Como se tudo fosse um nascer a cada segundo.

Como se tudo fosse tão simples como dizer, hoje apaguei o passado que faltava. A cabeça não te deixa desanimar, porque coloco todos os sonhos do mundo nas tuas mãos. É a tua responsabilidade, deixares-te perder na cidade que te abençoou a liberdade.

E encontras-me. Naquele banco onde trocámos o primeiro beijo. O primeiro beijo do dia, não o primeiro beijo da eternidade (todos os beijos que me roubas sabem a saudade). Esses primeiros beijos só aparecem nos romances que estão nas prateleiras mais altas do supermercado.

Este nosso beijo é um beijo de cidade amarela, cidade suja de vício e fado. Fado meu, fado nosso, este nosso encontro é uma canção de despedida com uma pergunta no final.

Tantas vezes que pegámos no carro rumo àquele café na Lapa, onde o empregado nos sorria de cumplicidade quando nos sentávamos na mesa do costume e pedíamos o café do costume. Parecia que era sempre a mesma chávena, a mesma luz, o mesmo sorriso, as mesmas conversas de animar, o mesmo fluir.

O mesmo banco de jardim. As mesmas mãos coladas e os mesmos cabelos ao vento.

Os mesmos sonhos, repetidos vezes sem conta, enquanto as tardes se tornavam em noites. E então, era altura de partir.

Percorremos uma cidade inteira até nos encontrarmos, algures entre Santos e a 24 de Julho, mas acabámos sempre por nos perder dentro de nós.

E hoje estamos aqui, no mesmo jardim cúmplice das nossas estórias de encantar. No mesmo jardim de verde que um dia nos disse, baixinho, que tudo seria perfeito se não perguntássemos porquê.

O desafio que o tempo nos colocava era sermos perfeitos, mas a perfeição é desistir do tempo, e nós perdemos sempre a vontade de lutar quando faz frio ou quando encontramos uma porta fechada.

Hoje encontras-me neste banco de jardim a sonhar. Sonho contigo, como sempre. Ao acenderes esse cigarro acendes também a primeira palavra da tarde, a única que quero ouvir:

Contigo.

E então, todos os becos e esquinas de Lisboa, todos os pedaços de calçada e todas as portas de edifícios marcados pelo tempo vão ser testemunhas da nossa ilusão. Todas as noites se transformarão em manhãs e todo o tempo será eterno para caminharmos a cidade que nasce todos os dias com a nossa fúria de viver.

Lisboa nasce, Lisboa põe-se, sem repousar. Olhos abertos aos amantes que se escondem nas sombras, olhar atento à solidão das almas perdidas, braços abertos à Liberdade, que aqui começa, com o nosso abraço.

Hoje poderia ser uma tarde diferente, mas não te apetece. Por mais que as mãos estejam velhas, por mais que os sapatos saibam o caminho a percorrer todos os dias, por mais que me vicie naquele olhar ou naquela forma de tocar, por mais que os dias comecem e acabem contigo, não há nada mais perfeito que tu, Lisboa, minha cidade de saudade.

João Luís

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