16.2.07

Correio do Leitor


Quando eu era pequenino…

Vim ao mundo no primeiro ano da década de 40 do século passado. O Estado Novo estava em plena pujança, os meninos e meninas aprendiam as primeiras letras em escolas separadas por sexos. Os seus bibes azuis, brancos ou cor-de-rosa alternavam com a camisa verde unissexo e o braço estendido na saudação romana.

A guerra mundial, que decorria lá fora, era o pano de fundo e o motivo principal para a penúria que se fazia sentir nesses tempos.

A “sopa do Sidónio” que, no meu bairro de Campo de Ourique, era conhecida por “sopa do Barroso” existia para (mal) saciar a fome dos deserdados da sorte. Era deprimente a visão de um exército de indigentes, esperando, de lata na mão, pela dádiva de uma sopa e de um pedaço de pão!...

Nos domingos de Verão, as famílias mais modestas procuravam as praias de Algés, Cruz Quebrada ou Trafaria (todas sem poluição…) para arrancharem em comezainas, pródigas em arroz de tomate, acompanhando carapaus fritos e pataniscas. Era o tempo das senhoras de racionamento e das “bichas” (agora diz-se “filas”…) intermináveis para o pão, as batatas, o carvão, o bacalhau… em suma, todos os viveres e bens de primeira necessidade.

Os poucos que conseguiam ir além da Instrução Primária – e eu era um desses “privilegiados” – ou ingressavam nas escolas Industriais ou Comerciais ou iam para os Liceus. Tudo dependia das posses dos pais e encarregados de educação, pois o Ensino não era gratuito nem obrigatório, após a 4ª. classe. Como sempre, rapazes para um lado, raparigas (muito menos) para o outro.

Como fui criado no seio de uma família “remediada” – para os padrões da rua pobre onde morava (e moro) fui parar ao Liceu de Pedro Nunes, onde fui colega de Freitas do Amaral, Vítor Constâncio, Jorge Sampaio e tutti quanti; e onde encontrei professores da craveira de Rómulo de Carvalho/ António Gedeão, morador na rua Francisco Metrass, no nosso bairro, Sant’ Ana Dionísio, David Mourão-Ferreira…

Quando eu era pequenino, a pobreza e o analfabetismo eram características do meu típico bairro de Campo de Ourique, onde viviam operários, vendedores ambulantes, biscateiros, pequenos marginais, costureirinhas, “fabricantes” e marçanos. Isto passava-se nas zonas mais pobres e degradadas, porque lá em cima, nas ruas amplas e rectilíneas, viviam o burguês instalado, o aristocrata falido, o comerciante abastado, o senhor doutor, o senhor engenheiro. E existiam o Quartel da Legião Portuguesa, mais outro do Exército, uma Rádio local (Rádio S. Mamede), o velhinho Cinema Europa (plateia, vinte cinco tostões…), o Vale do Rio, onde Pessoa bebia o seu copinho, o Café Latino, a Tentadora, a Ertilas e o então (ainda) mais bonito Jardim da Parada.

No Europa, Paris, Jardim Cinema, Cinearte viam-se filmes, em sessões duplas, cuidadosamente expurgadas de cenas ofensivas da Moral, dos Bons Costumes e da Política oficial. As fitas partiam-se constantemente, o que provocava o grito “Ó Marreco olhó sonoro!”, proferido pelos irados espectadores.

Não existiam discotecas, ou melhor, esse termo só era aplicável às lojas que vendiam discos; em seu lugar, existiam os bailes das colectividades de recreio – Verdi, Alunos de Apolo, Combatentes, Clube Atlético de Campo de Ourique, etc. -, onde as meninas eram severamente controladas pelas mamãs e os rapazes ostentavam fato completo, com a inevitável gravata e o cabelo empastado em brilhantina.

Pagava-se licença de isqueiro, quem atravessava a rua em diagonal era multado em 2$50 (vinte cinco tostões), era proibido andar descalço numa terra em que muita gente não tinha dinheiro para sapatos. A “bica” valia 1$50, o “eléctrico” $80, o autocarro 1$00 (um escudo ou dez tostões), quantias sem expressão no actual euro.

Quando eu era pequenino – e mesmo mais espigadote – os meus vizinhos pediam “um tostãozinho pró Santo António” para depois gastar em serivetes, rabuçados ou tramoços (era assim a pronúncia…). Mas enquanto eu comia pãozinho com manteiga, esses meus vizinhos tinham de se contentar com o casqueiro untado com azeite…

Fernando J. Almeida

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